Que pai/mãe de uma criança com autismo não teve um destes momentos em público? O seu filho a gritar, a girar ou a fazer barulho, e é o alvo dos olhares de desaprovação ou da hostilidade “do irritado”. “Controle o seu filho”, diz, friamente, o irritado. Talvez ache que o seu filho não tem disciplina, talvez reconheça a perturbação, mas culpa-o por o sujeitar a tal comportamento. O Irritado pode ser um estranho, um conhecido ou o primo Henrique.
Pois, naquele momento, sente o estigma que as sociedades em todo o mundo atribuem ao autismo. De diferentes maneiras e graus, as pessoas vêm o autismo como uma fonte de deceção, aborrecimento, vergonha ou pior. De acordo com alguns pesquisadores, o estigma pode impedir as famílias de procurar um diagnóstico e serviços para os seus filhos, de participar plenamente nas suas comunidades e de desfrutar da mesma qualidade de vida que os seus vizinhos. Simplificando, o estigma influência a saúde pública.
O estigma nasce da cultura, por isso pode parecer diferente dependendo se vive na Coreia do Sul, na Austrália, na Cisjordânia, no Japão ou nos Estados Unidos.
O Papa Francisco recentemente disse aos católicos romanos de todo o mundo para ajudarem a “quebrar o isolamento e, em muitos casos, o estigma que sobrecarrega as pessoas com perturbações do espectro do autismo, e com a mesma frequência, as suas famílias”.
A vergonha e o isolamento experimentado pelas pessoas com autismo e as suas famílias, são similares ao vivenciado por outras cujas diferenças os separam. Mas o autismo tem algumas características únicas que criaram uma tempestade quase perfeita para a vergonha e a rejeição.
Em suma, de uma forma mais séria, o autismo, frequentemente envolve um “comportamento antissocial extremamente perturbador”, escreveu o sociólogo australiano David E. Gray. Algumas pessoas com autismo podem estalar os dedos, bater, gritar ou agredir-se repetidamente. Podem não ser capazes de estabelecer contacto visual ou falar. Podem entrar no espaço pessoal de outras pessoas, causando medo e desconforto. No entanto, são fisicamente iguais a nós, tornando o seu comportamento duplamente suspeito para os desinformados.
“É esta combinação da incapacidade generalizada e a aparente normalidade física que origina o estigma, vivenciado pelas famílias com crianças com autismo, a sua qualidade única”, escreveu Gray em 1993.
Contudo, pessoas portadoras de autismo normalmente não têm características faciais identificáveis, como no Síndrome de Down, nem usam dispositivos como cadeiras de rodas ou bengalas para avisar outras pessoas sobre a presença de uma perturbação. Como resultado, o seu comportamento incomum pode ser confundido com má paternidade, falta de auto-controlo ou alguma doença mental. Tal pode aumentar o “peso” do estigma. Um estudo Israeliano, por exemplo, descobriu que os cuidadores (normalmente os pais) de pessoas com autismo relataram sentir-se mais estigmatizadas do que os cuidadores de pessoas com deficiência física ou intelectual. Noutro novo estudo, quase todos os pais e os cientistas americanos e canadienses entrevistados disseram acreditar que as pessoas com autismo sofrem de estigma, de acordo com o autor, Ruth L. Fischbach, PhD.
Autismo: Os primeiros dias
A filha de Eustacia Cutler foi diagnosticada com autismo menos de uma década depois desta ter sido descrita pela primeira vez por um psiquiatra em 1943. O seu marido, pensando que a sua criança era estranha e silenciosa, “retardada” ou “louca”, queria colocar a criança numa instituição. Pode parecer surpreendente hoje, mas na década de 1950, muitas crianças americanas com deficiências ou atrasos no desenvolvimento foram colocadas nestas instituíções, longe das suas famílias e da sua comunidade.
A Sr. Cutler insistiu em manter a sua filha em casa, onde ela recebeu terapia intensiva e educação. Em 1960, a Sra. Cutler visitou uma instituição para crianças com deficiências graves e deformidades, e desta vez até ela se encolheu. Lembrou-se do emaranhado de emoções sobre o que tinha visto: “Por mais inteligente que eu seja, por mais caridosa e reverente que seja a minha vida, profundamente mergulhada nos meus sonhos insensatos, há uma intensa ansiedade sobre estes pobres seres. Temer que um só olhar deles possa causar alguma contaminação horrível, eu também quero que eles sejam enviados. Fora de vista”.
Três anos depois, o sociólogo Erving Goffman definiria o conceito de estigma, de uma maneira um pouco semelhante à descrição da Sra. Cutler. Ele observou que o estigma originado pelos antigos gregos, que literalmente o chamariam a alguém para o identificar como um escravo, traidor ou criminoso.
O estigma é um ” descrédito profundo ” que faz a pessoa que o tenha, “contaminado” e ” desconsiderado ” escreveu em Estigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. “Por definição, é claro, acreditamos que a pessoa com um estigma não é totalmente humana”. As chamadas pessoas normais distanciam-se das estigmatizadas, e daquelas associadas a elas. O estigma de uma perturbação pode-se espalhar para a família da pessoa, quase como uma infeção.
Estigma agora
Isto foi há 50 anos. Como é o estigma no século XXI?
Depende de onde está. Uma mãe palestiniana em West Banks descreveu a reação da sua família ao seu filho com autismo: “Algumas pessoas da minha família foram compreensivas. Outras não. Diziam para nos livrarmos dele. Para nos livrarmos dele! [Eles disseram] “Por que é que estão a cuidar dele?” É assim que algumas pessoas pensam. Quando ele ficou doente, elas continuaram a dizer: ‘Porque é que estão a gastar dinheiro com ele?’ ”
Outro pai em West Banks descreveu a reação do público: “É muito difícil andar com o meu filho com autismo na rua. Toda a gente deixa o que está a fazer ou aquilo para onde está a olhar e começa a observar o meu filho. Sente que é a estrela num espetáculo de marionetas.”
Em 2011, os Drs. Young Shin Kim e Roy R. Grinker fizeram parte de um estudo onde encontraram diversas coisas surpreendentes sobre o autismo e o estigma na Coreia do Sul. Primeiro, a taxa de autismo era de 2,6%, a mais alta relatada em qualquer país. Mas ainda mais intrigante foi o fato de dois terços das crianças com PEA não serem diagnosticadas nem tratadas.
Os investigadores descobriram que o estigma pode impedir que as famílias procurem um diagnóstico e tratamento adequado. Os coreanos consideram que o autismo é um distúrbio hereditário estigmatizante, o autismo (chap’ae) impugna a linhagem da criança de ambos os lados e ameaça as perspectivas de casamento dos parentes não afetados. Como resultado, geralmente não é tratado, é diagnosticado como distúrbio de apego ou então não é registado.
O distúrbio de apego é um problema de interação social causado pela negligência na infância. Muitas mães coreanas parecem preferir este diagnóstico, mesmo que isso as culpe diretamente pela condição dos seus filhos.
Independentemente do que ele é chamado, qualquer tipo de “distúrbio” pode parecer estigmatizante.
O estranho: o que significa ser diferente
“Esta é uma sociedade onde é dado “estranho” se for um pouco diferente dos outros.”
Em 2007, as escolas no Japão começaram a oferecer educação especial a estudantes com deficiências de desenvolvimento, de acordo com um estudo realizado em Serviço Social. Isto foi difícil por causa dos lugares privilegiados da cultura japonesa para se encaixar na sociedade e na interdependência. Muitos pais e professores acreditavam que rotular uma criança como diferente e a necessitar de educação especial poderia atrapalhar o seu relacionamento com outras crianças, expondo-a a danos sociais e a Henken (preconceito ou estigma). Ao resumir as respostas culturais japonesas à ‘diferença’, um professor comentou: “Esta é uma sociedade em que você é chamado de’ estranho ‘se for um pouco diferente dos outros.”
O estudo descreveu como os professores de uma escola japonesa se envolveram numa “dança muito elaborada” para fazer com que os pais aceitassem ajuda extra para os alunos com dificuldades de aprendizagem. Um educador especial trabalhou lenta e gentilmente para cultivar o seu relacionamento com os pais, que teriam medo do henken. Uma das mães não queria que o educador especial falasse com ela no corredor, para que os outros pais não deduzissem que o seu filho era diferente. Outra observou o estigma específico ligado ao autismo: “Se houver um incidente, frequentemente ouvimos (os media) dizer algo como “a escuridão do kokoro'” (coração e mente) com autismo.
Rotulagem: Nós vs Eles
Noutros países, os pais também lutam com a possibilidade de terem os seus filhos rotulados com perturbação do espectro do autismo (PEA). Na Grã-Bretanha, os pesquisadores Ginny Russell e Brahm Norwich fieram um estudo com pais que aceitaram o diagnóstico de PEA para os seus filhos, juntamente com pais que deliberadamente evitaram um diagnóstico. Os pais deste último grupo foram informados por profissionais de que o seu filho poderia ter PEA, mas eles resistiram em avaliar os seus filhos e “rotulá-los”.
O estudo britânico observa que muitos pais enfrentam desafios quando o filho tem diagnóstico. O diagnóstico pode levar ao estigma, preconceito e à perda do sentimento de “normalidade” dos pais. Por outro lado, um diagnóstico pode abrir portas para terapias e serviços educacionais que podem melhorar os sintomas e a qualidade de vida da criança.
Em suma, os que evitam (os pais britânicos que não querem que o seu filho seja diagnosticado) dizem que o estigma e a rejeição são uma grande preocupação, não muito diferente dos pais japoneses. Um Pai explicou: “Quando utiliza um rótulo médico, tudo parece ser, para o mundo exterior, muito mais sério, muito mais assustador … começam a pensar “Oh bem, se calhar não quero a minha criança a brincar com ele “. Alguns temem que a sociedade esteja a rotular determinados traços como “anormais”, que eram meramente excêntricos ou diferentes.
Reformulando autismo e estigma
De acordo com Russell e Norwich, os pais das crianças diagnosticadas trabalhavam para reduzir o estigma do PEA,. Quando o seu filho se comportava “de maneira inadequada”, por exemplo, alguns explicavam que ele têm autismo ou que o seu cérebro estava ligado de maneira diferente. Eles incentivavam outros pais a procurar avaliações para o autismo. Alguns também se concentravam nos pontos fortes dos seus filhos. Um dos Pais descreveu como ficou maravilhada com a maneira como as crianças do espectro pensam e “como são fantásticas”.
Os esforços para desestigmatizar a incapacidade levam à mudança no idioma. A frase “necessidades especiais” afasta os “déficits” de uma deficiência. O especialista britânico em autismo Simon Baron-Cohen, entre outros, quer substituir “perturbação do espectro do autismo” por uma “condição do espectro do autismo”, porque a condição é “menos estigmatizante”. Também “reflete que estes indivíduos têm, não apenas desafios que requerem um diagnóstico médico, mas também áreas de força cognitiva”.
Para usar uma frase do Dr. Goffman, muitas vezes, aqueles que tentam desestigmatizar um grupo focam-se na sua semelhança aos “normais”.
A inclusão de crianças com necessidades especiais nas salas de aula “regulares” promove o tipo de interação capaz de reduzir o estigma. Em Martha’s Vineyard, por volta de 1900, os residentes surdos aparentemente não sofreram nenhum tipo de estigma ou de isolamento por parte dos residentes ouvintes. Uma forma de surdez hereditária era tão comum naquela ilha de Massachusetts que os residentes ouvintes aprendiam constantemente a usar a linguagem gestual com os seus vizinhos surdos, de acordo com um artigo da Social Science & Medicine.
No caso da Síndrome de Asperger, uma forma de autismo de alto funcionamento, esse esforço de desestigmatização também pode envolver destacar as vantagens de ter Asperger. Por exemplo, alguns defensores referem figuras históricas brilhantes como Albert Einstein, que, especulam, ter traços de Asperger. (Asperger não era identificado como um diagnóstico psiquiátrico até 1994.)
Em suma, e como resultado, o Asperger tornou-se associado à inteligência ou à proeza técnica em alguns setores. Noutros lugares, ainda carrega um estigma, mas menos do que aquele associado ao autismo clássico. Um estudo de 2013 com mais de 500 profissionais de saúde e educadores na Austrália, descobriu que eles acreditavam que o diagnóstico de autismo é mais estigmatizante do que o de Asperger. Metade deles opôs-se aos planos de combinar Asperger e autismo num único diagnóstico de desordem do espectro do autismo. Alguns citaram o aumento do estigma para as pessoas com Asperger como motivo.
Autismo como uma variação natural
“Eu sou um autista orgulhoso. – Tito Mukhopadhyay”
Alguns adultos com PEA lideraram um movimento de neuro diversidade que celebra o autismo como uma variação natural da condição humana e se opõe aos esforços para o curar. Estes defensores preferem os apoios e acomodações para as pessoas com PEA, em vez de tratamentos que apagariam comportamentos autistas inofensivos. Como o professor Ralph J. Savarese explicou no Disability Studies Quarterly, a neuro diversidade significa “uma disposição para abrir espaço à diferença como diferença (não para a patologia)”.
Alguns defensores da neuro diversidade, com formas mais brandas de autismo, chamaram a atenção dos media mas, e aqueles com um elevado grau de autismo? Eles aparecem na media convencional apenas quando têm a oportunidade de demonstrar habilidades extraordinárias ou para desafiar os preconceitos do autismo.
O poeta Tito Mukhopadhyay diagnosticado com autismo grave e não verbal, na Índia, nos anos 90. A sua mãe, Soma Mukhopadhyay, ensinou-o a comunicar através da escrita, usando o seu próprio estilo de ensino. Mãe e filho foram tema de vários programas de televisão, artigos e blogs. O autor de The Mind Tree e outros livros, Mukhopadhyay espera por um mundo além do estigma. Ele escreve: ” Eu sonho com um dia em que podemos crescer numa sociedade amadurecida, onde ninguém será ‘normal ou anormal’, apenas seres humanos, a aceitar qualquer outro ser humano, prestes a crescer juntos”.
O professor Savarese em Reasonable People escreveu, “são pessoas como Mukhopadhyay, que desafiam ou desacreditam na antiga visão do autismo como uma “desordem global devastadora que rouba as pessoas com autismo de sua própria humanidade”.
Diferente, não menos
Quanto a Eustacia Cutler, seis décadas após o diagnóstico da sua filha, viaja pelos Estados Unidos conversando com os pais em conferências sobre o autismo. Acompanhada pela sua, agora famosa, filha: Temple Grandin, a cientista, professora universitária, autora e defensora, a sua vida é o assunto de um filme da HBO. Uma afirmação atribuída tanto à mãe (no filme) e à filha é que o autismo torna a Dr. Grandin “diferente, não menos”. Este é um contraponto simples, mas eloquente, ao estigma.
Traduzido por: Eliana Joaquim
Artigo original aqui.